Conerer

Conerer ressalta a rica herança quilombola e afro-brasileira da cidade de Paracatu

Município possui uma das maiores populações quilombola de Minas Gerais. O evento revisitou o papel essencial dessas comunidades na preservação da identidade cultural afro-brasileira e na resistência histórica
Publicado em 14/11/2024 12:00 Atualizado em 17/11/2024 16:32
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Irene Coutrim, Dona Cristina Coutrim e Lara Luísa quilombolas de Paracatu que ccompartilharam seus conhecimentos com os participantes durante o IV Conerer
Irene Coutrim, Dona Cristina Coutrim e Lara Luísa quilombolas de Paracatu que ccompartilharam seus conhecimentos com os participantes durante o IV Conerer
Crédito: Diretoria de Comunicação Social e Eventos / Ana Clara Santos Costa

O IV Congresso Nacional de Educação para as Relações Étnico-Raciais (Conerer), realizado em 12 e 13 de novembro no IFTM Campus Paracatu, destacou a rica herança quilombola e afro-brasileira do município, onde 80% da população se autodeclara preta ou parda, segundo o Censo de 2022. Paracatu, que possui a maior população quilombola da região do Triângulo Mineiro, Alto Paranaíba e Noroeste de Minas, abriga cinco quilombos reconhecidos pela Fundação Cultural Palmares — Machadinho, Pontal, Cercado, Família dos Amaros e São Domingos — além de outros em processo de certificação. O evento revisitou o papel essencial dessas comunidade na preservação da identidade cultural afro-brasileira e na resistência histórica.

Lara Luísa, pesquisadora, pedagoga do Instituto Federal de Santa Catarina (IFSC) e quilombola de Paracatu, destaca a importância de trabalharmos essa temática no IFTM, uma vez que todas as cidades na quais que a instituição têm campi fazem parte do Quilombo do Campo Grande. “Nós precisamos que o IFTM se aquilombe com a gente. O quilombo era um lugar que acolhia todas as pessoas, mulheres, brancos pobres, indígenas, negros e todas as pessoas que fugiam da opressão da coroa eram acolhidas no quilombo. E esse jeito que a gente tem, do Triângulo Mineiro, de abraçar as pessoas é tudo herança do Quilombo Campo Grande, o Quilombo do Rei Ambrósio. Todos nós somos descendentes desse grande quilombo, que tinha mais de 57 comunidades quilombolas confederadas e foi o maior em extensão territorial do Brasil, maior até que o Quilombo dos Palmares”, disse Lara.

A programação do evento trouxe o protagonismo dos quilombolas da região, que compartilharam suas vivências e tradições. Uma delas foi o relato de vivência com a Dona Cristina Coutrim, da Comunidade Quilombola São Domingos, a comunidade mais antiga de Paracatu e teve grande importância na história da cidade.  Dona Cristina vive no quilombo há 85 anos, desde que nasceu, sua fala foi uma reflexão sobre o valor das nossas raízes. “O Quilombo São Domingos é muito importante para Paracatu, porque conta muito bem a história da cidade e da sua fundação, porque foi a primeira, a primeira comunidade que surgiu, lá por volta de 1827. E foi o quilombo que sustentou o início de Paracatu, com os produtos das lavouras que nossos ancestrais plantava e colhia e trazia para abastecer a cidade. Não tinha mercados, não tinha feira, não tinha nada. Então, era a comunidade abastecia a cidade com as frutas, verduras, frango, ovos e tudo que a gente tinha na comunidade era trazido para vender aqui na cidade. Compartilhar minha vivência no quilombo para mim foi muito bom e parece que o pessoal gostou também. Para mim, é uma importância muito grande tá passando para os jovens de hoje a vivência da gente e conheçam essa vivência nossa”.

Irene Coutrim é filha de Dona Cristina e líder do Quilombo de São Domingos, que atualmente tem aproximadamente 180 famílias. Irene ministrou a oficina “Culinária do Quilombo: bolo zumbi”. Conversar com ela é revisitar as angústias e desafios de quem optou por permanecer em sua terra e preservar suas tradições, para ela o quilombo é espaço de resistência.“Teve as famílias que foram deixadas quando seus senhores foram embora de Paracatu. E lá eles tiveram que ficar, lá eles tiveram que ter a força, a coragem pra trabalhar para o sustento de cada um deles. Mas, com a graça de Deus, eles sempre foram muito sábios e determinados. Então, eles deixaram raízes pra nós até os dias de hoje. “

A líder quilombola, destaca a dificuldade que seu povo viveu ao longo dos anos “É uma história triste, que pra alguns hoje caminha para um final feliz. Mas, meus ancestrais não tiveram essa oportunidade. E a gente fica observando, o quanto que a gente tem que dar essa continuidade, porque se não, esquece. E aquilo que vai pra escrita, se torna um produto de prateleira. E a nossa história não é um produto de prateleira. Ela é uma história pra ser contada, pra ser vivida e vivenciada. E com isso, a gente continua nesse trabalho. Eu tô na liderança da comunidade pra que a comunidade não perca sua história, sua essência e seu valor. E aí é uma luta constante e diária. Acredito que é trabalho que muito me engrandece, porque eu represento os meus ancestrais”, complementou Irene.

Nas comunidades quilombolas e na tradição africana há um forte compromisso com a ancestralidade, com seus ensinamentos e tradições, Irene se refere à mãe como “Mestre Griô”, denominação utilizada para se referir aos líderes ancestrais das comunidades. O mestre griô é reconhecido, coletivamente, por transmitir ensinamentos de geração em geração, com uma identidade própria de um povo, e inclusive com uma potência expressiva pedagógica em tais ensinamentos. Quando dizem que uma pessoa é um griô, significa que ela se comprometeu a guardar as histórias, a guardar uma genealogia, e viver como um registro vivo, com instrumentos, elementos e rituais de iniciação. É como um historiador que trabalha com o canto e a memória. Sobre isso Irene complementa: "a minha mãe ainda representa a voz ativa dos seus familiares. E eu tô aqui pra dar continuidade à voz dela, e levá-la aonde ela não chegou. Então, é essa a nossa realidade de hoje. É o nosso viver, é a nossa forma que a gente ainda preserva. Lógico, com mudanças, com tecnologias, com o progresso avançando, mas nós permanecemos e continua o nosso jeito, e a nossa maneira de ser e fazer".

Visita ao Quilombo São Domingos

Os participantes do IV Conerer tiveram a oportunidade de visitar e vivenciar tudo o que foi dito por Irene Coutrim. Acompanhados pelo professor Alexandre Gama, os visitantes puderam conhecer a “Casa Museu do Quilombo", uma residência feita de adobe, mantida e habitada pelos próprios moradores, que abriram suas portas para compartilhar sua cultura e história. A experiência foi conduzida por eles, os protagonistas dessa herança viva, que contaram aos participantes a trajetória do quilombo e de Paracatu. “Fomos recebidos ao ar livre, nos quintais das casas quilombolas, onde os moradores compartilharam conosco suas histórias.”, disse o professor.

Gama explica que há diferentes formas de quilombos “Diferente da ideia comum de quilombo como refúgio de escravizados fugidos, São Domingos foi formado a partir do momento em que as minas se exauriram aqui na cidade, pois lá era um foco de mineração. Então, o que acontecia muito em muitos casos em Minas Gerais. Os três troncos familiares que se organizaram ali no Quilombo de São Domingos e preservam suas tradições até hoje”, explicou o professor.

Visita ao Centro Histórico

Durante o evento, a visita ao centro histórico da cidade proporcionou uma experiência única e direcionada ao reconhecimento da contribuição afrodescendente no local. O professor Alexandre Gama, que guiou a atividade, destacou como essa abordagem foi uma oportunidade de fortalecer a compreensão das relações étnico-raciais locais.

Como a temática do Evento são as relações étnico-raciais, o professor Alexandre Gama,que guiou os participantes, direcionou a visita para o tema do evento, com isso a visita foi pensada com o foco para mostrar a presença dos povos africanos em Paracatu.

A primeira parada foi na Igreja Matriz de Santo Antônio, onde Gama mostrou a importância do papel dos africanos na arquitetura da cidade, ressaltando que, além do trabalho braçal dos negros escravizados, havia também "africanos que eram arquitetos". Ele explicou que essas igrejas não foram apenas construídas por mãos negras, mas revelam uma herança de habilidades artísticas e técnicas que muitas vezes é ignorada. “A gente não pode pensar só no trabalho braçal desenvolvido pelos negros escravizados. Havia arquitetos negros trabalhando aqui”, destacou o professor.

A visita também abordou as práticas religiosas de matriz africana em Paracatu. Gama contou sobre o rito Aguntunda, fundado por uma líder religiosa em Paracatu. Segundo Gama, ela foi sequestrada em Lagos, na Nigéria, trazida ao Brasil, e que mais tarde chegou a Paracatu. “Temos registros aqui que mostram a presença de uma liderança feminina e um rito religioso muito parecido com o Candomblé”, explicou Gama.

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